(já postei uma versão em inglês) Aconteceu em São Paulo, no dia 2 de março. “Se você fosse homem eu te dava uma porrada”. (Pausa) Antes de contextualizar esta fala, quantos de vocês pensaram “o que será que ELA fez para ouvir isso?”. É uma pergunta retórica, para guardar no coração, eu não quero saber a resposta. Mesmo, por favor! Este é um post desabafo, mas acima de tudo, um post educativo. Espero eu. E é para educar sobre o machismo e a misoginia. Como alguém que acredita que a violência física só deve ser usada para auto defesa, esta fala que iniciou o post, TALVEZ fosse aceita caso eu tivesse agredido fisicamente o meu interlocutor. Bem, não houve agressão física. O que “provocou” a fala foi apenas uma mulher exigindo de um cara que responsabilizasse pelo dano material provocado por ele. Eis a história: Saí do Shopping União (Osasco), com Estela, após uma sessão tosca de cinema (ao menos ela se divertiu) e descendo naquela avenida lateral das faculdades que vai para a estação Presidente Altino, sentido de nossa casa, enquanto esperava na minha faixa, a faixa que permitia ir reto, atrás de outros carros, um ônibus da Azul ser guinchado para dentro de um estacionamento, ao iniciar o movimento, um veículo veio pela faixa da esquerda – exclusiva para virar à esquerda, e forçou a passagem à direita raspando meu espelho retrovisor e entrando na minha frente. Não que estivesse errada se o fizesse, mas não deu nem tempo de eu tentar impedir, ele veio com a certeza de que passaria. Eu dei farol alto e buzinei para que ele encostasse. Ao parear os carros abrimos os vidros e ele, jovem que depois vim saber chamava-se Rodrigo, iniciou alguma tentativa de narrativa do tipo “o que aconteceu? não é comigo?” no que eu disse, severamente olhando para ele “você está errado, você veio por uma faixa exclusiva de conversão à esquerda para passar aqui na minha frente e raspou no meu carro, você é um irresponsável”. Num primeiro momento Rodrigo pediu desculpas. No que eu respondi. “Vamos encostar ali e ver o que você fez no meu carro” (até então eu não tinha visto só ouvido o raspão). Encostamos. Saímos do carro. Eu vi o raspão. Não era nada muito grave. Mas por algo similarmente pequeno (um totózinho em um carro na rua Alvarenga, um risco de menos de 10cm), que eu causei em um veículo um dia por descuido, eu não titubeei em acionar o seguro para consertar o carro do senhor em quem bati. Coisinhas de nada como essa, cuja ocorrência não presenciei, me custaram para arrumar quando resolvi ir atrás de um funileiro. Uma raspadinha acima da roda, ridícula, quase imperceptível, R$380. “Olha, você vai ter que se responsabilizar pelo seu erro, eu quero um retrovisor novo”. “O que? Por isso? Como é que você vai provar que fui eu que fiz isso?!” Tentou esquivar-se o moço. Mantive me firme. “O que , você está negando sua responsabilidade agora? Vai pagar pelo seu erro sim”. Falei, pegando o celular e tirando uma foto do veículo que ele dirigia. Neste momento, eis que surge de dentro do carro, Bruno, amigo de Rodrigo, e diz, gesticulando com o mão enquanto caminha em nossa direção: “Não precisa fazer show”. “Show? Que show? Eu só quero que seu amigo se responsabilize pelo que ele fez”. Neste momento, ele continuou falando “ele já pediu desculpas” e não sei mais o que, acho que Rodrigo falava também. Apesar de meu suposto “show” eu observava os dois em pé na minha frente (meio “sem querer querendo” colocando me entre meu carro e eles) aguardando uma brecha que não vinha. “Com licença” disse “posso falar?” Os dois finalmente pararam sua verborragia. “Que show? Eu só estou exigindo que seu amigo se responsabilize pelo erro dele”. Bruno, que agora tomou conta da cena, diz “Você está alterada, ela já pediu desculpa”. “Eu não estou alterada, seu amigo pediu desculpas e agora diz que não vai se responsabilizar, eu estou me defendendo, estou aqui falando com o motorista que raspou no meu carro e você sai e vem pro meio da conversa, qual é a sua intenção?” No que Bruno, passageiro, acompanhante no carro de Rodrigo, o motorista, que agora assiste a este pequeno diálogo meio curioso, manda a pérola machista: “Se você fosse homem eu te dava uma porrada”. “Oi? Teu colega comete um erro pelo qual não quer se responsabilizar e você me daria uma porrada se eu fosse homem” “Daria mesmo, cara” e saindo já da cena “mina folgada do caralho”. No final das contas houve o compromisso de Rodrigo pagar o conserto do retrovisor, trocamos telefones, detalhes não importam, e tenho minhas dúvidas de que ele vai cumprir, mas ficam aqui algumas observações didáticas sobre o discurso de Bruno: O discurso de Bruno, mais do que o de Rodrigo (Rodrigo, apesar do causador do fuzuê só queria se safar da perda material), é um discurso permeado de machismo. Diria que vai além, que há traços de misoginia. (Há uma pequena diferença, tem um artigo sobre isso que traduzi para a Artemis, verei se acho). Show por quê? Porque uma mulher encarava um homem e dizia “rapaz, vocês fez uma cagada, responsabilize-se”? E por que alterada? Minha voz não levantou, o foco da minha fala manteve-se em Rodrigo e o espelho retrovisor. Não houve gesticulação (como a de Bruno saindo do carro “Não precisa fazer show”) e não tentei impedir ninguém de falar. Será que a alteração seria o fato de uma mulher não se deixar intimidar por dois caras alterados dando show na frente dela? Ah, mas o cara podia fazer a mesma coisa com o um homem. Não, não podia, se fosse um homem ali, como ele mesmo disse, ele dava uma porrada. Que show seria, hein! Mas show, show ele nunca diria que o cara está fazendo. Era a porrada ou, muito provavelmente, ele virava brother do outro motorista. Ah, mas você queria levar a porrada então? Talvez ele pudesse tentar, mas não é essa a questão! A questão é a tentativa de intimidar a interlocutora mulher, usando discursos que tentam posicionar a mulher num lugar pertinente a narrativa machista, que se a mulher, ousa debater com um homem sobre algo, em especial uma cagada sua, ela é “louca” (ou seja, faz show, está alterada). E finalmente, “folgada pra caralho” por que? Eu arrisco dizer que, numa narrativa permeada por gaslighting, a minha folga era em não assumir a posição em que eles queriam me colocar. Era não dar o show que Bruno queria, era não mostrar a alteração que queria provocar, era não mostrar intimidação perante a ameaça física velada: “Se você fosse homem, eu te dava uma porrada”. “Não seja por isso, porrada eu também ser dar” (fala que omiti anteriormente para guardar para o gran finale). “Dava mesmo, mina folgada do caralho”. Claro que não foi por medo que Bruno não quis checar se eu sabia mesmo bater. E nem por respeito. Seu intuito era o intuito de um covarde, apoiado numa visão machista do que são as mulheres e como se comportam perante homens, contava em poder intimidar. O que ela pensa que é tentando discutir com homem. “Folgada do caralho”. Mesmo assim, apesar de todo empoderamento que quero crer estar imersa, apesar de tudo que reflito. Apesar de todo auto-controle que a maturidade e o karate principalmente (aquilo que me ensinou a “dar porradas” e a me defender bem delas, em especial essas simbólicas), há um mal estar que fica após essas falas. Um gosto amargo. Que ruim que tem que ser assim. Que ruim que estamos rodeados de Brunos e Rodrigos. Que é comum, que quase passa despercebido. E quando é apontado é tido como “mimimi”. Esse tipo de discurso é extremamente violento, é um discurso que quer calar uma mulher, que quer acuá-la. Espero que mais e mais homens sensibilizem-se de que não precisa ser assim. E que mais e mais mulheres consigam ter firmeza perante isso. Não é fácil.